Consulta de Expertos OPS/OMS sobre LVC

Tratamento da LV Canina e seu Impacto na Incidência de LV Humana e na Prevalência da LV em Cães.
Uma Experiência em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

M.V. PhD Victor Márcio Ribeiro1
Escola de Veterinária PUCMINAS.
Av. Amazonas, 2218 - Belo Horizonte - Minas Gerais
CEP: 30180-003 - vitor@pucminas.br

Consulta de Expertos OPS/OMS sobre Leishmaniasis Visceral en Las Américas

O tratamento da LV canina não é uma novidade no mundo científico. Na Europa vem sendo realizado há 50 anos e como forma preventiva MANCIANTI et al. (1988) demonstraram que o uso do antimonial em cães poderia ser recomendado como forma de controle da doença canina, uma vez que ele preveniu o  desenvolvimento da doença em 90% de cães assintomáticos. GRADONI et al. (1988) verificaram que o tratamento da LVC com antimonial como medida de controle mostrou redução da prevalência de LVC em 9,2% dos cães da Ilha de Elba. ALVAR et al. (1994) utilizando no tratamento canino antimonial e alopurinol, por períodos reduzidos, verificaram que além da melhora clínica, os animais se mantiveram não infectantes por pelo menos quatro meses após o tratamento. Os autores advogaram um curso de tratamento para os cães infectados durante a estação de transmissão da doença na Europa, como forma de controle da transmissão. BANETH et al. (2001) demonstraram que o tratamento diário com alopurinol induzia melhora clínica mas não a cura parasitológica. Entretanto, os autores verificaram forte decréscimo da infecciosidade dos cães tratados para Lu longipalpis sendo esta uma medida possível de ser aplicada em áreas de transmissão.

No Brasil, entretanto, o tratamento da LVC somente começou a ser discutido após a sua urbanização. Até então, o tratamento da LVC era considerado inadequado, conforme demonstrado por MARZOCHI et al. (1985) que consideraram o antimonial muito tóxico para uso em cães. Porém, o tratamento da LVC começou a ser discutido a nível nacional, pela comunidade veterinária , a partir da ocorrência da doença em Belo Horizonte. Desta forma, é importante a compreensão da dinâmica da doença nessa cidade. A cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, possui cerca de 2.350.564 habitantes (IBGE, 2000) e população canina estimada em 240.000 cães. Conforme descrito por GENARO et al. (1990), em março de 1989 ocorreu o óbito de uma criança com 2 anos de idade, de família migrante de zona endêmica no norte de Minas Gerais, no município de Sabará, vizinho de Belo Horizonte. Na ocasião foram feitos exames  sorológicos em 289 cães e encontrou-se prevalência de 2,76% de LVC. Os cães soropositivos foram
eliminados e, segundo os autores, medidas profiláticas foram aplicadas visando controle da endemia. BEVILACQUA et al. (2001) fizeram um estudo da urbanização da LV em Belo Horizonte e descreveram que em novembro de 1992, foram feitos os primeiros diagnósticos sorológicos da LVC na cidade, a partir de atendimentos realizados por médicos veterinários da rede privada. A partir desses casos o serviço público optou por ações centradas no inquérito canino e sacrifício dos cães soropositivos durante os anos de 1993 e 1994. O combate ao vetor foi incorporado a partir de borrifações intra e peridomiciliares durante o ano de 1994, embora em número pequeno de residências e de forma não sistematizada e não contínua. A expansão da doença foi evidente e a partir de fevereiro de 1994 começaram a ser registrados casos humanos de LV. Desta forma, desde então foram confirmados, até outubro de 2005, 710 casos humanos de LV; sendo que nos últimos quatro anos observou-se crescimento da ocorrência da LVH. O percentual de positividade da LVC iniciou, em 1993, com 5,5% e em 2004, 11 anos depois, foi de 7,4%. Anualmente vêm sendo
examinados mais de 100.000 cães e nos últimos três anos foram borrifados mais de 100.000 domicílios. A média de retirada dos cães encontrados sororeagentes nos últimos cinco anos foi de 84,8%, superior à média anterior, de 75,3% encontrada entre os anos de 1996 a 1999. Isto significa que de 1996 a outubro de 2005 foram sacrificados 38.713 cães, deixando de ser retirados, por motivos diversos, 9.897 cães, ou seja, 8%. 

Os motivos de não recolhimento de cães sororeagentes vêm sendo levantados pelo Ministério Público (MP) de Minas Gerais – 1ª Promotoria de Defesa da Saúde Consulta de Expertos OPS/OMS sobre Leishmaniasis Visceral en Las Américas 105 e, até agora, relacionam-se os resultados falso positivos, situações em que o serviço não retornou para recolhimento do animal e a opção pelo tratamento do cão. Observa-se, nas declarações dos proprietários ao MP que a maioria tem optado por repetir o exame realizado pelo serviço público, em laboratórios particulares. RIBEIRO & MICHALICK (2002), estudando características de cães sorologicamente positivos para LV durante atendimento médico veterinário verificaram que 80% dos proprietários destes animais, após esclarecidos em relação ao prognóstico da doença, sua condição, em geral, incurável, seu aspecto zoonótico e a necessidade de implementação de medidas de segurança, optaram pelo tratamento. Em outra oportunidade RIBEIRO & LIMA (2005) observaram, através da aplicação de um questionário, que os entrevistados, em sua maioria, discordam com a prática da eliminação canina e  expressam o desejo em tratar os cães acometidos pela doença. Entre os principais motivos da opção pelo tratamento dos animais relacionaram-se o amor e o fato de existir o tratamento. 

Sabemos que o conhecimento das pessoas da existência de tratamento da LVC ocorre pela sua divulgação através da comunidade médica veterinária. Vale a pena expressarmos aqui que a história da LVC em Belo Horizonte junto à comunidade médico veterinária da rede privada esteve atrelada à saúde pública desde o início dos surgimentos dos casos. Conforme já documentado por BEVILACQUA et al. (2001), foram os médicos veterinários da rede privada os primeiros a diagnosticar clinicamente os casos de LVC em Belo Horizonte que foram confirmados sorológica e parasitologicamente no Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Também os médicos veterinários deram apoio ao serviço de saúde no início da manifestação da doença em Belo Horizonte. Era grande o número de casos notificados e animais sacrificados pelos clínicos veterinários e, a cada dia, aumentava a ansiedade desta categoria profissional pelo crescente número de animais sororeagentes e conseqüentemente sacrificados. À medida que o tempo passava e os casos caninos aumentavam,  associados a casos humanos a partir do ano de 1994. Os médicos veterinários especialistas em pequenos animais buscavam conhecimento e opções para o manejo do cães infectados. Já começavam a surgir notícias de médicos veterinários que, de forma isolada, tratavam cães com LV. Houve, neste período, intenso contato entre os médicos veterinários da cidade com colegas de outros países e finalmente, em 1997, a comunidade dos médicos veterinários da cidade de Belo Horizonte, declarou através do periódico de sua associação, a ANCLIVEPA – Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais – Regional Minas Gerais, sua adesão e recomendação de protocolos para o tratamento canino da LV. Posteriormente, em 2002, a ANCLIVEPA NACIONAL referendou esta recomendação, em
um comunicado distribuído às ANCLIVEPAs Regionais de todo o país. Na cidade de Belo Horizonte, os médicos veterinários tem sido orientados pela ANCLIVEPA, a seguir criteriosamente as recomendações de tratamento e acompanhamento dos cães com LV. Desta forma, os cães candidatos a tratamento da LV devem ser inseridos em protocolos já definidos pela literatura, ter rigoroso controle clínico por parte do médico veterinário que deve notificar os órgãos sanitários e validar medidas de controle que assegurem que o animal tratado não represente risco à saúde pública.

RIBEIRO & MICHALICK (2001) apresentaram a seqüência indicada para um cão candidato ao tratamento da LV.Inicialmente, deve-se considerar parâmetros ligados à condição clínica do paciente e a participação consciente do proprietário. Os exames clínico e laboratoriais incluem a confirmação do diagnóstico e a pesquisa do parasita na pele. Abre-se aqui um parêntesis para a importância da pesquisa do parasita na pele, uma vez que este exame reflete a infecciosidade do animal. O padrão seguido para pesquisa de parasita na pele, é o método imunohistoquiímico apresentado por TAFURI et al. (2005) que permite a identificação, através de método histológico, de Leishmanias na pele dos cães infectados, independentes de sua condição clínica, aumentando o conhecimento da LVC e o risco potencial do seu papel como reservatório. O esclarecimento detalhado sobre a doença, sua condição de enfermidade crônica e incurável e a necessidade de medidas profiláticas concomitantes ao tratamento devem ser passados ao proprietário. Os cães em tratamento devem ser revisados a cada três meses por meio de exames físicos e laboratoriais, como sorologia para mensuração do título de anticorpos, bioquímica sérica, hemograma completo, proteinograma e pesquisa de parasitas da pele. RIBEIRO et al. (2002) acompanhando cães em tratamento de LV por até 18 meses, demonstraram que antes de iniciar o tratamento, 14% dos animais apresentaram formas amastigotas na pele e após iniciado o tratamento foram encontradas formas do parasita em um cão, representando 0,9% da amostra. Experimento realizado por RIBEIRO et al. (2005) objetivando avaliar o impacto do tratamento associado ao controle vetorial em um canil situado em área endêmica de LV, verificaram a interrupção da transmissão durante o período de duração do estudo, de dois anos. A medida de controle do vetor utilizada foi a colocação do colar inseticida (Scalibor®) em todos os animais da propriedade e o tratamento dos animais sororeagentes com alopurinol. Após dois anos de acompanhamento nenhum novo caso foi registrado no canil, tendo um animal sororeagente convertido para negativo. Dados preliminares, não publicados, de Consulta de Expertos OPS/OMS sobre Leishmaniasis Visceral en Las Américas 106 RIBEIRO et al., verificaram presença de formas amastigotas na pele de 76 (36%) de 219 cães infectados, examinados antes de qualquer medida terapêutica, através do método de imunohistoquímica (TAFURI et al., 2005). Também foi observado que em 80 cães submetidos a tratamento utilizando anfotericina b e alopurinol, com tempo superior a quatro meses pós tratamento, foram realizadas 172 biópsias em tempos diferentes. Destas, seis (3%) foram positivas pelo mesmo método. Ressalta-se que dois cães apresentaram durante o período de observação duas recidivas de parasitismo cutâneo cada um. A redução do encontro de parasitas na pele em cães tratados, demonstra a efetividade do tratamento, uma vez que, do ponto de vista clínico os animais do estudo tiveram mais de 90% de recuperação.

Não foi documentado em nenhum dos casos de cães submetidos a tratamento, dentro dos protocolos e cuidados recomendados, que tenha havido ocorrência na mesma residência de um caso humano de LV. Ao mesmo tempo, refletimos que a ocorrência de casos humanos liga-se ao aumento da força de transmissão pelo número excessivo de reservatórios e, sobretudo, de vetores no foco. Não existe na cidade de Belo Horizonte uma campanha sistemática de orientação popular de controle do vetor através do uso de colares inseticidas nos cães. 

Conforme pudemos observar nos levantamentos realizados pelo Ministério Público, nenhum dos depoimentos dos cidadãos relatou que os técnicos da saúde tenham orientado sobre as ações de controle do vetor centradas no cão ou no ambiente. A orientação manteve-se centrada no sacrifício dos cães, o que ao nosso ver é a sedimentação de um equívoco. 

Nenhuma campanha tem sido desenvolvida junto à inciativa privada. É importante que os profissionais médico veterinários sejam alertados da época de maior transmissão vetorial, durante e logo após a estação chuvosa. Os médicos veterinários podem acentuar neste período as recomendações junto aos proprietários para aplicação dos inseticidas nos cães domiciliados. 

Nesta ocasião torna-se mais difícil e menos eficiente a borrifação peridomiciliar.

Um cão devidamente protegido da aproximação do vetor pelos métodos já reconhecidos e sob terapêutica supervisionada, não nos parece exercer riscos à saúde pública. O impacto sobre a saúde pública pode ser visto sob os aspectos de que a comunidade privada veterinária pode se tornar uma ferramenta útil na educação para saúde de proprietários de cães, orientando na prevenção de novos casos e na possibilidade de transmissão. À rede de informações da doença poderá ter incorporada além da notificação dos casos de cães infectados, aqueles submetidos a tratamento.

Novos estudos que abordem este tema são necessários para sua melhor compreensão, fundamentados no princípio da busca de um caminho que possa unir os setores envolvidos.
 

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