Revisão Sistemática OMS - Traduzida


Controle da Leishmaniose Visceral na América Latina, uma revisão sistemática

Introdução
         A Leishmaniose Visceral (LV) na América Latina é uma zoonose e é causada por um protozoário intracelular Leishmania infantum (syn. L. chagasi). O cão doméstico é o principal reservatório animal [1-4]. Outros animais domésticos como gatos foram encontrados naturalmente infectados com L. chagasi [5]. Raposas e outros animais selvagens podem desempenhar um papel na transmissão silvestre [6-16]. A LV é uma doença causada por vetores, e o conhecimento a respeito das características da população do vetor e o seu comportamento são cruciais para a definição de medidas de controle em potencial. O parasita é transmitido de um mamífero hospedeiro a outro por um flebotomídeos  noturno, Lutzomyia longipalpis, um inseto de 2 a 3 milímetros de comprimento que é bem adaptado aos ambientes peri-domésticos e intra-domiciliares [17-21]. A distribuição de Lu. longipalpis é ampla por toda a América Latina, indo do México à Argentina, [22 - 34]. Outros vetores têm sido apontados como vetores na transmissão de L. infantum: Lu. cruzi no Brasil [35] e Lu. evansi na Colômbia, Venezuela e México [36-39].
O fardo da LV na América Latina não é fácil de avaliar, pois a maioria dos países não possui sistemas de vigilância eficazes. O número de indivíduos expostos também é difícil de estimar, devido à distribuição geográfica focal e esparsa da doença [40 - 42].
O controle da LV nas Américas têm provado ser desafiador até agora. O diagnóstico precoce e tratamento de casos em humanos são essenciais para melhorar o prognóstico dos paciente individuais, mas terão um impacto limitado sobre a transmissão se o reservatório animal não for abordado, considerando que a eficiência do homem como reservatório de L. infantum é pobre [43 ]. Modelagens matemática sugerem que o controle dos vetores e a vacinação de cães seriam mais eficazes do que as intervenções tendo como alvo cães infectados, como o abate de cães [44]. Alguns estudos experimentais demonstraram uma diminuição da incidência da LV em cães e crianças após triagem sorológica e abate de cães soropositivos [45-47], mas esta estratégia de controle é cada vez mais debatida [48]. Apesar da aplicação intensiva desta estratégia no Brasil nos últimos anos, a incidência de LV humana manteve-se elevada [49]. A falta de eficácia desta estratégia de abate tem sido atribuída à baixa sensibilidade do teste de seleção, os longos atrasos entre o diagnóstico e o abate e a rejeição a esta intervenção por parte dos proprietários dos cães. O tratamento de cães infectados não é uma estratégia de controle eficaz, pois as recaídas são freqüentes e os cães rapidamente se tornam infecciosos novamente, apesar da cura clínica [50-52]. A vacinação canina seria a melhor estratégia, se uma vacina eficaz for desenvolvida. Atualmente, duas vacinas caninas são registradas no Brasil, mas nenhuma provou ser uma ferramenta eficaz no controle da transmissão. Finalmente, a população de flebotomídeos vetores podem ser direcionados diretamente através de uma variedade de ferramentas, como inseticida ou outras intervenções.
Recentemente, uma ambiciosa iniciativa de eliminação da LV foi lançada pelos governos da Índia, de Bangladesh e do Nepal, com o objetivo de reduzir a incidência anual de LV para menos de um a cada 10.000 habitantes nos distritos ou subdistritos até 2015 [56]. Esta estratégia explora os recentes desenvolvimentos tecnológicos com relação a testes de diagnóstico simples de usar, novas drogas e algumas evidências sobre a eficácia do controle integrado de vetores. A epidemia é considerada passível de eliminação na região por causa da natureza antroponótica da doença, do seu confinamento relativo a 96 distritos em 3 países e devido à evidência histórica de que a pulverização intensiva de DDT usada na erradicação da malária quase eliminou a LV [57-59]. Em contraste, na América Latina o padrão de transmissão zoonótica constitui um importante obstáculo com relação a tal empreendimento, e além disso, a eficácia do diagnóstico e medicamentos para LV, como demonstrado na Ásia, não podem ser facilmente extrapolados para a América Latina pois a LV pode ser heterogênea entre as regiões com relação à sua apresentação clínica e ao seu prognóstico.
Relatamos uma revisão sistemática da literatura sobre a eficácia das estratégias de controle da LV na América Latina, com o objetivo de identificar as questões-chave para um melhor controle e investigação nesta área. Nossa revisão é baseada em um relatório de indícios solicitada pela Organização Pan-americana da Saúde, para apoiar ações conjuntas com relação a doenças infecciosas negligenciadas na América Latina.

Resultados

Epidemiologia da LV nas Américas

            A LV nas Américas é caracterizada, assim como em outras regiões, por febre prolongada, perda de peso, hepatomegalia, esplenomegalia, hipergamaglobulinemia e pancitopenia, e é geralmente fatal se não for tratada adequadamente. No entanto, nem todas as infecções por Leishmania levam à doença clínica evidente: no Brasil razões de 8-18 infecções assintomáticas incidentes para 1 caso clínico incidente foram descritas [60-64]. Alguns estudos sugerem que a susceptibilidade /resistência à LV em seres humanos poderiam ser geneticamente determinados [65-70]. O prognóstico de LV foi estudado no Brasil e anemia grave, febre por mais de 60 dias, diarréia e icterícia foram relatados como fatores de prognóstico pessimista [71]. Uma forma não-ulcerada da leishmaniose causada por L. infantum foi relatada em Honduras, na mesma região onde casos de LV têm sido observados [72-74].
A LV canina é relevante, tanto como fonte de infecção de flebotomídeos no ambiente doméstico, como relevante por si só devido ao fardo de doenças em animais. Estimativas de incidência e prevalência da LV canina nas Américas têm sido relatadas a partir de vários focos endêmicos [75-85]. No entanto, a magnitude e a relação específica entre infecções caninos e em humanos e, o mais importante, a associação com casos humanos de LV não são bem compreendidos. A manutenção da transmissão na população canina é principalmente devido a picadas de flebótomos infectados, mas meios de transmissão alternativos têm sido descritos, como de outros vetores [86,87] e por transmissão sexual [86,88]. As últimas rotas foram citadas para explicar a presença de infecções por Leishmania em cães em ambientes onde não foram detectados vetores flebotomídeos.
            O Brasil declarou um total de 50.060 casos clínicos de LV entre 1990 e 2006, e este número representa 90% de todos os casos de LV notificados nas Américas [41,49]. No entanto, a subnotificação substancial (42 - 45%) de LV no sistema de vigilância do Brasil foi documentada recentemente [89]. No passado a LV afetou, principalmente, as áreas rurais pobres do nordeste do país, mas desde a década de 1980, as epidemias ocorreram nas principais cidades com mais de 500.000 habitantes, como Teresina, São Luís, Belo Horizonte, Campo Grande, Natal, Araçatuba e outros [90-94]. Alguns desses focos urbanos de LV foram atribuídos à migração de famílias das áreas rurais para as favelas peri-urbanas após períodos de seca prolongada. Enquanto a incidência de casos de LV relatados na década de 1980 foram, em média, de 1500 casos/ano, este número subiu para uma média de 3362 ao ano entre 2000 e 2006 [49]. A doença espalhou-se gradualmente pelas alas sul e leste e tem sido relatada desde 1999 nos estados de São Paulo e do Mato Grosso do Sul [95]. Mais recentemente, alguns casos humanos têm sido relatados em Brasília, a capital federal, onde a prevalência da infecção canina é em torno de 18%, afetando tanto cães em assentamentos pobres da periferia quanto em bairros de renda alta. Surtos de LV em humanos também têm sido relatados em Honduras [96] Venezuela [83] Colômbia [78] Paraguai [97] e Argentina [98]. Casos esporádicos e/ou importação de casos humanos ou caninos foram descritos no Chile [99] Equador [100] Bolívia [101] México [102] América Central e no Caribe [28.103] e na Guiana Francesa [104].
Enquanto a tendência crescente da LV na América Latina tem sido amplamente atribuída ao êxodo rural, o surgimento do HIV pode ser outro fator de risco. Até agora, o contributo da epidemia de HIV para a carga de LV tem sido menos do que se temia inicialmente, pois o número de casos relatados de LV em conjunto com AIDS permaneceram baixos. O Brasil relatou 176 casos de co-infecção de HIV e LV [105], apesar da existência de um número significativo de indivíduos co-infectados assintomáticos [106]. Os fatores de risco para o desenvolvimento de doenças humanas são apenas parcialmente compreendidos. Na América Latina, a LV afeta principalmente crianças, e pessoas com desnutrição apresentam o maior risco [107-109]. Ser um jovem macho e a presença de animais no bairro foram identificados como fatores de risco para infecção por LV em um estudo de caso-controle [110]. Ser dono de um cão e fatores sócio-econômicos também podem ser associados com um risco maior de infecção assintomática - medido pelo teste dérmico positivo de Leishamniose [111.110]. Serviços urbanos e saneamento básico de má qualidade também têm sido associados a um maior risco de infecção por LV. Após controle de fatores como idade, aglomeração, e  incidência de fundo de LV na área em que os sujeitos viviam, o risco de adquirir a doença foi encontrado como significativamente mais alto para as pessoas que viviam em casas com um sistema de esgoto inadequado e aqueles que não tinham acesso a coleta de resíduos regulares [112]. Associações entre a incidência de LV e residência em favelas ou áreas com vegetação verde também têm sido relatadas [113.114].

Diagnóstico humano
            A LV é uma doença fatal se não for tratada e as drogas atualmente disponíveis são bastante tóxicas. Como as manifestações clínicas da doença não são específicas, testes de diagnóstico altamente sensíveis, assim como muito específicos, são necessários [115]. Uma estratégia de controle eficaz exige também testes fáceis de realizar e robustos, que podem ser facilmente utilizado em ambientes de atendimento primário. O diagnóstico definitivo da LV é classicamente estabelecido pela demonstração microscópica da forma amastigota do parasita, em aspirações do baço, da medula óssea ou de linfonodos. A sensibilidade e especificidade do aspirado esplênico é excelente (93 - 99%), mas a técnica possui um risco potencialmente fatal de hemorragia interna em cerca de 1/1000 processos, o que impede seu uso em grande escala em ambientes de atendimento básico. As aspirações da medula óssea e de linfonodos são mais seguros, porém menos sensíveis - 53-86% e 53-65%, respectivamente, e também exigem conhecimentos técnicos para a aspiração e análise que geralmente não estão disponíveis em ambientes de atendimento primário [115]. Diversos testes imunológicos têm sido desenvolvidos para o diagnóstico da LV, mas todos sofrem duas grandes desvantagens. Em primeiro lugar, os anticorpos permanecem detectáveis até vários anos após um tratamento bem-sucedido, impossibilitando o diagnóstico de recidiva. Em segundo lugar, uma porcentagem significativa de pessoas saudáveis que vivem em áreas endêmicas testam positivas para anticorpos conta a leishmaniose, devido a infecções assintomáticas. Portanto, testes de anticorpos devem ser sempre utilizados em conjunto com uma definição padrão de casos clínicos para o diagnóstico de LV.

Diagnóstico canino
Revisamos as avaliações dos seguintes exames sorológicos para a detecção de LV canina: IFAT, ELISA, dot-ELISA, DAT e rK39 TIC. IFAT é o critério adotado pelo Ministério da Saúde para a triagem dos cães e de campanhas de abate. Estimativas publicadas variam de 72-100%, para  sensibilidade e 52-100% para especificidade (ver Tabela 3). A sensibilidade e especificidade moderada deste teste, o tempo longo entre a coleta de amostras e o abate, bem como a complexidade de sua execução têm sido invocadas como uma das razões para a baixa eficácia da campanha de abate. Vários testes de ELISA foram avaliadas, com ensaios baseados em antígenos homólogos geralmente mostrando sensibilidade maior.
Recentemente, mais diagnósticos simples e de fácil utilização como o DAT e uma versão canina do teste em formato de vareta rK39 foram avaliados para o diagnóstico de cães com bons resultados. Para o DAT liofilizado a sensibilidade variou de 85-100% e a especificidade de 89-100% e a sensibilidade do TIC rK39 variou de 72-96% e especificidade de 62-100%. A principal vantagem destes testes rápidos seriam encurtar o tempo entre o diagnóstico e o abate/tratamento. No entanto, as estimativas de sensibilidade relatadas nos estudos acima dependem dos tipos de cães incluídos no grupo de casos "verdadeiros", com maior sensibilidade em cães sintomáticos do que assintomáticas e, infelizmente, diversas avaliações não incluíram uma amostra suficiente de uma infecção assintomática para estimativas sobre a sensibilidade. A sensibilidade do teste em cães assintomáticos é fundamental para uma estratégia de controle, pois nestes os cães são infecciosos, e devem ser alvos da campanha.
Neste contexto, os testes sensíveis de detecção de antígenos como o PCR podem se tornar um marcador relevante com relação a esta infecção no futuro, oferecendo a vantagem adicional de que ainda podem ser utilizados em cães vacinados que apresentarão sorologia positiva devido à vacina. No entanto, Quinnell et al (2001) mostraram em um estudo longitudinal de cães infectados naturalmente como a sensibilidade da PCR foi alta logo após a infecção, mas reduziu-se a 50% posteriormente. A sensibilidade da sorologia também variou com o tempo, sendo mais baixo no momento da infecção, mas claramente superior, posteriormente (93-100). Eles concluíram que o PCR foi o mais útil para a detecção da doença ativa, e consideraram a sorologia como sendo a mais adequada para a detecção de infecção [131].
Controle de vetores e reservatórios animais
O controle da LV é complexo e muitas vezes envolve intervenções combinadas. Os efeitos dessas intervenções, em termos de recursos humanos e/ou doença e infecção canina ou diretamente na densidade de flebótomos, não são claramente definidos. O Programa de Controle Brasileiro recomenda uma intervenção conjunta com base em parâmetros de epidemiologia humana, distribuição de flebotomídeos e vigilância de infecções caninas. As principais intervenções que têm sido aplicadas no Brasil são o abate de cães e o controle de vetores com inseticidas. Apesar desta abordagem, o ônus da doença continua alto e pesquisas baseadas nestes problemas são necessárias para melhorar os resultados. Outros países latino-americanos, onde a incidência desta doença é menor do que o Brasil, têm implementado intervenções semelhantes com menor intensidade. Coleiras impregnadas com inseticida para cães e vacinação canina atualmente não são recomendados como medidas de controle da saúde pública [139]
Magalhães et al, (1980) publicou um estudo retrospectivo e não-controlado sobre o impacto de uma intervenção conjunta composta por tratamento humano em casos de LV, o abate de cães soropositivos e a pulverização com DDT em 19 municípios do Vale do Rio Doce no Estado de Minas Gerais, Brasil e relatou o desaparecimento dos casos de humanos sintomáticos após 15 anos de aplicação desta estratégia. As principais limitações deste estudo foram: i) a falta de informação sobre a intensidade e a periodicidade das medidas de controle, ii) a baixa sensibilidade do teste complementar de fixação para detectar a infecção canina, iii) a notificação passiva de casos de LV em humanos como fonte de dados para avaliar o impacto na população humana e iv) as populações humana e canina expostas às medidas de controle não foram relatadas. O inseticida utilizado, DDT, não está mais disponível para fins de controle de LV [140].
Dietze et al (1997) relataram um estudo de campo de seleção e abate de cães, com base na análise semestral com um teste previamente validado de DOT-ELISA. O experimento foi conduzido em três vales de uma área rural do Estado do Espírito Santo, Brasil. A intervenção foi realizada em dois vales e o controle (sem intervenção) em um vale separado. A soroprevalência inicial em humanos e cães foi semelhante entre os grupos intervenção e controle. As medidas finais foram as taxas de soroconversão de humanos e cães. Este estudo não demonstrou um efeito positivo do abate de cães como medida de controle de infecção em humanos e cães. Aos 6 meses, houve uma diferença de 16% da taxa de soroconversão em cães (36% no grupo da intervenção versus 52% no grupo controle), mas esta diferença não foi significativa [141]. As limitações deste estudo foram o seu desenho não-aleatório, um baixo número de grupos para comparação (2:1), 26,5% de perda de acompanhamento em seres humanos por causa da migração relacionada com a seca e a pequena amostra de cães domésticos (140 cães). A perda canina no acompanhamento final não foi descrita.
            Braga et al (1998) relataram a comparação das duas estratégias de seleção e abate dos cães: um baseado na triagem por ELISA foi comparado à seleção com base em IFAT como rotineiramente recomendado pelo Programa Nacional de Controle. A principal diferença consiste no tempo após a colheita de sangue (7 dias para o teste ELISA e 80 dias para IFAT). O experimento foi conduzido em uma área rural do Nordeste do Brasil, onde 28 comunidades foram sistematicamente atribuídas a um dos dois grupos. O desfecho foi a soroprevalência canina detectada através dos dois métodos de diagnóstico 10 meses após a intervenção. O principal resultado foi a maior redução de soroprevalência canina no grupo ELISA, provavelmente causado por uma combinação dos efeitos da remoção do cão com maior rapidez e a maior sensibilidade do teste ELISA. As principais limitações deste estudo foram: i) que a soroprevalência inicial foi significativamente diferente entre os grupos e ii) a impossibilidade de separar o efeito do tempo de remoção do cão dos efeito da menor sensibilidade do teste de imunofluorescência. Este trabalho revelou que o programa brasileiro estava utilizando um teste para detecção de infecção por LV em cães com baixa sensibilidade e que o tempo de remoção do cão no programa de rotina era muito longo [142].
            Ashford et al (1998) relataram um estudo controlado de intervenção de remoção de cães soropositivos em uma área endêmica da Bahia, Brasil. A área de intervenção foi submetida a uma triagem com a FAST-ELISA e remoção de cães soropositivos, e na área de controle nenhuma intervenção foi realizada. O resultado primário foi a taxa de soroconversão anual de cães e soroprevalência cão durante quatro anos (1989 to1993) e o desfecho secundário foram os casos pediátricos humanos de LV detectados através dos registros das unidades de saúde na área. Os autores afirmam uma redução significativa da taxa de soroconversão de cão na área de intervenção, em comparação com a taxa de soroconversão de cães na zona de controle, e uma incidência significativamente menor de casos pediátricos de LV na área de intervenção. As principais limitações deste estudo foram desenho não-aleatório, o baixo número de clusters na comparação (1:1), a prevalência inicial das infecções dos cães diferentes entre os grupos, a alta (40%) perda de acompanhamento no grupo de intervenção, após um ano, a remoção incompleta de cães soropositivos, a falta de informação sobre o grupo de controle relacionados ao tamanho da amostra, perda de acompanhamento, e a substituição da população de cães durante o estudo [45].
Paranhos-Silva et al (1998) descreveram o acompanhamento de diversos grupos de cães soronegativos em Jequié, Bahia, Brasil, área endêmica para LV. A prevalência inicial de infecção entre 1681 cães foi de 23,5%. Após a triagem sorológica de seis em seis meses para 18 meses e remoção daqueles que apresentaram soroconversão, a taxa de incidência anual de infecção foi de 6,55 casos/100 anos-caninos. Notoriamente, o risco não foi homogêneo entre os grupos e os grupos no bairro do centro da cidade apresentaram um risco menor. A migração de cães entre os grupos foi de 2,3 casos/100 anos-caninos. A limitação do presente estudo foi o fato de a intervenção de abate dos cães não ser diretamente avaliada, pois o objetivo principal foi detectar o padrão de migração dos cães, mas o estudo continua sendo relevante, pois confirma a heterogeneidade do risco e da importância do movimento dos cães como problemas em potencial para qualquer programa de controle ao lidar com o reservatório canino [143].
            Da Silva et al (2001) relataram um estudo de campo sobre a fase III da vacina em cães soronegativos rastreados com IFAT e FML-ELISA e expostos à vacina ligante fucose-manose em três doses por via subcutânea em intervalos de 21 dias. O braço de controle foi tratado com placebo salino. Os resultados finais considerados foram a LV  sintomática LV ou morte, as taxas de soroconversão no FML-ELISA e a conversão do teste dérmico de leishmaniose composto pelo antígeno L. donovani bruto. Avaliações de acompanhamento foram realizadas aos 2, 7, 13 e 24 meses. Uma diferença significativa nos três parâmetros foi observada durante o estudo. A eficácia global para impedir a LV sintomáticos foi de 75%. Os principais problemas deste estudo foram a impossibilidade de uma avaliação rigorosa da taxa de infecção, porque o produto da vacina e, provavelmente, as doses repetidas de leishmanina interferiram com a resposta sorológica, com mais da metade dos indivíduos do grupo controle demonstrando resultados positivos no FML-ELISA. Outro inconveniente foi a falta de alocação aleatória dos indivíduos e dos dados de base sobre as características relevantes dos cães, tais como idade, sexo e tempo de exposição à área de transmissão [152]
Giffoni et al (2002) relataram o efeito da aplicação de uma formulação local de permetrina a 65% em caninos infectados com LV e a abundância de flebotomídeos. A diminuição da prevalência da LV canina foi observada na área de intervenção em comparação com a maior prevalência na área de controle. Não houve efeito sobre a população de flebotomídeos. As principais limitações do estudo foram a prevalência  de dados de base não-comparáveis entre as áreas de intervenção e controle, a baixa sensibilidade do teste utilizado para definir a infecção (IFAT) e as perdas significativas durante o acompanhamento, quando alguns cães morreram e foram excluídos da análise [150].
Feliciangeli et al (2003) descreveu um estudo controlado de pulverização de um piretróide (-cialotrina) a cada 5 meses e nebulização especial com volume ultra-baixo de organofosforados (fenitrotion) ao redor de casas duas vezes por mês durante dez meses, em uma intervenção, comparada com uma zona de controle O principal vetor capturado foi Lu. longipalpis. Uma diminuição significativa da abundância de flebotomídeos foi observado dentro da área de intervenção. O efeito residual da pulverização não era mais do que 3 meses em ambos cimento e paredes pintadas a óleo. O efeito da nebulização espacial foi discreto sobre a população de flebotomídeos no exterior das casas. A principal limitação do estudo foi o pequeno número de casas observadas e o estilo de construção específico destas casas em cimento completo, rebocados e com paredes pintadas a óleo e telhados de zinco. Portanto, a validade externa dos dados obtidos a partir deste cenário poderia ser reduzido [144].
            De Oliveira et al (2003) relataram a avaliação das medidas de controle de rotina combinada de abate de cães soropositivos e das aplicações de inseticidas durante seis anos. A intensidade da aplicação das medidas de controle foram correlacionados com a incidência de LV humana, a cobertura dos censos caninos, o número de cães pesquisados e o número de edifícios submetidos a aplicações de inseticidas. As principais desvantagens deste estudo foram pesquisadores que trabalham com dados de fonte secundária, que não foram coletados especificamente para fins de investigação e pela falta de uma área de controle, sem intervenção, para fins comparativos [151].
            Reithinger et al (2004) relataram um ensaio de campo controlado para avaliar a eficiência de coleiras impregnadas com inseticida para prevenir a infecção detectada através de testes sorológicos ou detecção de DNA por PCR em uma intervenção, em comparação com uma zona de controle. Os autores não conseguiram detectar uma diferença significativa entre os grupos na incidência de novas infecções, mas demonstraram uma redução significativa de anticorpos em cães protegidos por coleiras.  As principais limitações deste estudo foram a comparação de um para um, a não prevalência de dados-base de infecção por LV comparáveis entre os grupos, a elevada taxa de perda de acompanhamento dos grupos, a freqüência elevada de perda de coleiras e a migração de cães. A modelagem matemática utilizando os resultados obtidos neste estudo sugere que as coleiras de cães seriam uma alternativa melhor que o abate [54].
            Moreira et al (2004) relataram as taxas de incidência de infecção por Leishmania canina em uma coorte de cães submetidos a uma estratégia otimizada de abate que consistiu em: (i) triagem ELISA das amostras de soro, (ii) redução do intervalo de tempo entre o diagnóstico sorológico e a remoção de cães; (iii) a análise uma alta porcentagem da população canina. Eles demonstraram que a incidência da infecção canina permaneceu estável por até 2,5 anos de observação no âmbito desta estratégia otimizada. Uma alta taxa de substituição dos cães foi observada e esta substituição envolveu filhotes sensíveis e cães já infectados. A principal limitação do presente estudo foi o desenho descontrolado que impedia a possibilidade de detectar o impacto do abate dos cães, levando em consideração que, sem a intervenção as incidências poderiam ter sido maiores do que as observadas [147].
            Courtenay et al (2007) relataram o efeito de barreira, a taxa de mortalidade em 24-h e as taxas de Lu. longipalpis em humanos em domicílios que utilizavam mosquiteiros impregnados com deltametrina em comparação com as famílias utilizando mosquiteiros não-tratados. O estudo descreveu um aumento de 39% na capacidade de barreira de mosquiteiros impregnados, 80% de redução nas taxas incidência de flebotomídeos em seres humanos e um aumento de 98% nas taxas de mortalidade em 24-h de flebotomídeos. O estudo foi feito em condições de campo com um pequeno número de observações durante um período muito curto de exposição aos mosquiteiros tratados (três dias consecutivos), e o efeito residual não foi medido. No entanto, os resultados impressionantes indicam a necessidade de explorar esta nova intervenção, considerando que esta intervenção pode trazer um benefício adicional em áreas onde a malária também é endêmica [149].
            Costa et al (2007) relataram um estudo de intervenção comunitária para comparar o efeito de quatro estratégias sobre a LV humana: 1. pulverização de casas e currais com um inseticida piretróide, 2. Pulverização intradomiciliar e eliminação de cães soropositivos; 3. combinação de pulverização intradomiciliar e currais além de eliminar cães soropositivos, e 4. pulverização apenas como referência para comparação. O resultado foi avaliado por meio da incidência de soroconversão nos seres humanos, seis meses após a aplicação das intervenções. Os resultados indicaram um efeito positivo da remoção canina na incidência de infecção por Leishmania em homens, mas surpreendentemente, a combinação de abate do cão mais a pulverização exterior de abrigos de animais peridomiciliares não demonstrou qualquer efeito. As principais limitações deste estudo foram a incidência de LV base não comparável entre o grupo de pulverização das casas e os outros três grupos, a alta porcentagem de perda de acompanhamento de indivíduos suscetíveis (44%); a sensibilidade e especificidade sub-ótima do método utilizado para a medição da soroconversão (ELISA com antígeno bruto). A relevância deste estudo é o fato de que ele constitui a primeira tentativa de medir o efeito das intervenções combinadas sobre a incidência de LV humana [153].
            De Souza et al (2008) relataram um estudo de intervenção comunitário para comparar o efeito de (i) pulverizações de inseticida piretróide, (ii) pulverização de inseticida piretróide em conjunto com o abate de cães soropositivos com (iii) nenhuma intervenção. As intervenções foram mantidas por dois anos e os resultados foram registrados a cada ano. O uso de inseticidas foi realizado a cada 6 meses. Embora uma menor incidência tenha sido observada nos grupos submetidos a intervenções, e essa redução foi mais intensa depois de dois anos, o estudo não conseguiu detectar diferenças estatisticamente significativas [148].

Lacunas nas pesquisas e perspectivas
            A presente revisão dos principais temas relacionados com o controle de LV na América Latina revelou que ainda existe muito trabalho a ser feito, a fim de esclarecer a dinâmica de transmissão da Leishmania em populações de vetores humanos, caninos e vetores artrópodes. A magnitude exata do problema continua em grande parte desconhecida, e a incidência da doença é conhecida em apenas  um país da região. Os determinantes da infecção por L. chagasi em humanos também são mal compreendidos, com a exceção do estado nutricional de crianças pequenas. Os fatores de risco para o desenvolvimento de doença sintomática não são claramente compreendidos, e todos os fatores sob investigação não demonstraram associações fortes, apesar da forte plausibilidade biológica para explicar suas ligações com o risco da doença. Um grande esforço coordenado deve ser feito para determinar os principais fatores de risco no desenvolvimento da doença e as possíveis interações entre eles.
            Apesar desta falta de conhecimento, uma série de intervenções de controle são praticadas com intensidades diferentes em áreas endêmicas. Em humanos, os testes específicos de diagnóstico e medicamentos são utilizados, as populações de cães são submetidas à triagem e ao abate, e medidas de controle de vetores são aplicadas, em graus variáveis. No entanto, o número crescente de casos verificados de LV  no Brasil e a expansão da transmissão da LV em áreas anteriormente não afetadas levantam dúvidas sobre o impacto das medidas de controle em uso.
            Nossa revisão sistemática de ferramentas para o diagnóstico humano revelou que, para casos sintomáticos de LV, os TIC rK39 parecem estar prontos para uso em campo, a fim de estabelecer a sua eficácia, com claras vantagens sobre o tradicional IFAT ou testes ELISA. O ensaio DAT mostrou desempenho diagnóstico semelhante, mas não é tão simples de utilizar quanto o rK39. As prioridades de investigação neste domínio devem ser orientadas na direção de estudos de precisão diagnóstica em grandes estudos prospectivos (fase-3) e com relação ao estudo do desempenho de diagnósticos em grupos específicos, como em pacientes co-infectados por HIV.
            Intervenções de controle visando o reservatório canino para o abate/tratamento requerem testes precisos capazes de detectar infecções assintomáticas, assim como os cães sintomáticos. Validar esses testes não é tarefa fácil, pois não há padrão adequado para o diagnóstico da infecção assintomática. Ensaios de PCR parecem ser muito atraentes, mas estimar sua precisão e reprodutibilidade ainda constitui uma prioridade da investigação. Além disso, novas estratégias de triagem com base na utilização combinada, paralela ou seqüencial de testes disponíveis atualmente ainda precisam ser validadas.
Outro desafio enfrentado pelo diagnóstico canino está relacionados com a distinção dos resultados da sorologia positiva produzida pela infecção natural e os testes positivos induzidos por produtos vacinais atualmente registrados. O desenvolvimento e a validação adequada de testes com capacidade de discriminar os dois fenômenos são cruciais para evitar interferências com as intervenções concomitantes, incluindo o abate e vacinação de cães na mesma área. Além disso, o estudo dos fatores determinantes da infecciosidade dos cães para os flebotomídeos como vetores é essencial para definir a melhor estratégia de abate [155] e os  fatores determinantes da susceptibilidade canina à infecção [156] são cruciais para a concepção de testes de vacinas caninas. Muitas intervenções de controle não foram submetidas a uma avaliação adequada, principalmente devido à falta de técnicas e protocolos padronizados para medir o seu impacto sobre resultados relevantes.
Alguns dos problemas com a concepção dos ensaios de intervenção comunitária que analisamos estão relacionados com a falta de métodos de diagnóstico precisos e fáceis de utilizar, para definir os resultados relevantes na população humana e canina. Além disso, a definição de um grupo de controle é um desafio por causa de um dilema ético óbvio. A heterogeneidade de transmissão da doença dentro da área de estudo muitas vezes gerou desequilíbrios nas comparações entre os grupos de base, e o processo de atribuição aleatória também é complexo, devido à mobilidade do ser humano, canino e da população do vetor. A maioria dos estudos comunitários relatados utilizam um número muito limitado de grupos para comparação (normalmente de um para um). Apesar de todas essas limitações, um número considerável de relatórios pôde ser revisto em detalhes, não mostrando uma forte evidência de um impacto significativo na transmissão da LV para nenhuma das intervenções revistas.
            O abate canino parece ser a intervenção menos aceitável ao nível da comunidade, por razões óbvias e tem baixa eficiência devido à alta taxa de reposição de cães eliminados com cachorros sensíveis e outros obstáculos culturais [51.143.146.157.158]. Intervenções de controle de vetores parecem melhor aceitas pelas populações afetadas, mas estudos sobre conhecimento, atitudes e práticas (KAP) sobre este assunto ainda faltam. Modelagens matemáticas sugeriram eficiências encorajantes destas intervenções de controle de vetores, embora exista ainda a necessidade de novos estudos e a resolução de algumas questões tecnológicas ainda é necessária. O primeiro desafio é a escolha da melhor maneira de entrega do inseticida, ou seja, através da pulverização das casas e dos abrigos de animais, coleiras caninas impregnadas, mosquiteiros para uso humano, etc. Um melhor conhecimento da sazonalidade do vetor e do seu comportamento também é necessário para o desenrolar destas intervenções [29,144,159-161]. As evidências atuais indicam que nebulização espacial é inútil e que o efeito residual da parede da casa de pulverização é muito pequeno [144.162].
            Coleiras impregnadas com inseticidas parecem ter um efeito mais residual [55], possuem vantagens teóricas sobre os outros métodos, e devem ser estudadas em estudos maiores e melhor controlados. O surgimento potencial de resistência a inseticidas também deve ser considerado para o planejamento a longo prazo de qualquer intervenção de controle de vetores [163].
Certamente, o desenvolvimento de vacinas para cães e humanos deve ser priorizado, apesar das perguntas sobre a sustentabilidade a longo prazo de tais intervenções [152,164-168]. As vacinas caninas já registradas no Brasil parecem ter algum efeito protetor contra a LV canina, mas estas não foram devidamente avaliadas para definir o seu papel como medidas de controle contra a LV humana. Esta avaliação é desafiante, pois ensaios de campo deverão incluir parâmetros relevantes canino,s relacionadas com a infectividade do cão para o vetor, assim como os parâmetros humanos relevantes, que incluem infecções sintomáticas e assintomáticas, a fim de obter estimativas precisas do efeito da vacina sobre as taxas de transmissão. O desenvolvimento da vacina humana ainda deve demorar pelo menos anos até que se possam obter candidatos eficazes e seguros para os testes clínicos. Além disso, os marcadores substitutos do efeito protetor desejado não são bem compreendidos e a definição de população-alvo para esses produtos será uma questão de intenso debate.
            Finalmente, o papel de reservatórios silvestres em alguns cenários de transmissão de LV relevantes merecem uma investigação mais específica. A possibilidade de controlar a enzoótica canina levanta a questão sobre o papel de animais sinantrópicos peridomiciliares, como raposas, marsupiais e roedores como possíveis reservatórios competentes e eficientes na perpetuação da transmissão de LV [169]. Estudos de custo-eficiência são essenciais para a formulação de um programa de controle, mas isto não pode ser feito antes da demonstração adequada da eficiência das intervenções disponíveis.
Entretanto, os investigadores e os oficiais de programa de controle devem estar cientes da necessidade de avaliação dos custos das intervenções, a fim de facilitar a avaliação econômica propriamente dita, um papel essencial no processo decisório para traduzir os resultados científicos em políticas e práticas. Por fim, mas não menos importante, uma estratégia preventiva que merece mais atenção é o uso de suporte nutricional para crianças em áreas endêmicas, a fim de reduzir o risco do desenvolvimento da doença e melhorar o prognóstico dos casos sintomáticos. Em países como o Brasil, a aplicação orientada de suporte nutricional em áreas de risco para LV é interessante e provavelmente apresentaria um bom custo-benefício na perspectiva da sociedade como um todo. Da mesma forma, os sistemas para a melhoria da habitação e de gestão de resíduos, bem como outras medidas gerais que envolvem a participação ativa da comunidade, devem ser incentivadas e poderiam ser estudadas por métodos de pesquisa qualitativa [170].
            Evidências sugerem que o controle aprimorado da LV nas Américas é possível, se intervenções de eficácia conhecidas fossem aplicadas de uma forma mais estruturada. A eliminação da LV zoonótica na América Latina ainda não é uma meta realista, levando em consideração a complexidade e a diversidade dos cenários de sua transmissão, as lacunas no conhecimento científico e a falta de intervenções adequadas e devidamente validadas. A definição das prioridades de investigação é essencial para superar as dificuldades atuais, e a revisão das estratégias de controle atuais é imperativa a fim de evitar o desvio de recursos econômicos e humanos para intervenções de saúde.

Agradecimentos
Esta revisão tem o apoio financeiro da BIREME / OPAS / OMS. Os autores agradecem a Sra. Anne Marie Trooskens por sua ajuda com a bibliografia, o Dr. Daniel Salomon e a Dra. Ana Rabello para a revisão do manuscrito.